04/05/2011

Água e vinho


Provavelmente você vai se sentir meio idiota fazendo o que vou te pedir. Mas o que proponho é de bom coração, quem sabe um exercício pra gente tentar se deter nos gestos mais triviais, esses que a gente carrega uma vida inteira e deixa como herança para os filhos sem nem se perguntar porquê.

De cara posso dizer que você precisará de uma taça de vinho e um copo d'água para esta tarefa. Me perdoe ter que pedir algo que custa dinheiro, nunca é bom ter que pedir isso, inda mais para quem a gente não conhece. Mas aqui não importa o vinho ser caro ou barato, o melhor para nós é ser aquele mesmo que você costuma beber. A água imagino que você vai arrumar, afinal está lendo este texto da internet e deve ter pelo menos um bebedouro por aí. A taça é importante que seja uma taça, o copo para a água pode ser de requeijão.

Se não tiver o vinho e não puder comprá-lo agora, sugiro que espere este dia chegar antes de avançar para o próximo parágrafo. É que gostaria muito que você tivesse primeiro uma taça de vinho e um copo d'água, dispostos aí na sua frente, um do lado do outro, antes que você avançasse para o próximo parágrafo.

*


Pois então que estamos combinados e prontos, quero te pedir um favor. Erga a taça de vinho e sinta bem ela na sua mão, pense como ela já serviu você e os seus amigos, quantas iguais a ela já não quebraram cumprindo este mesmo propósito. Veja este vinho cor de sangue, note que não é coincidência este ser o único caso em que o nome de uma bebida é também o nome de uma cor. Balance um pouco a mão, deixe o vinho percorrer cada orifício de dentro da taça. E respire tudo sem pressa, sem frescura, como se disso dependesse a sua própria vida – mas nem tanto. Afinal, é um gesto sobre o qual a gente não costuma parar para prestar atenção, este de você levar agora a taça até a boca e sorver lentamente o primeiro gole.

Sentiu bem este gosto? Está imaginando como esse gosto que você está sentindo agora Cristo o sentiu na própria boca dias antes de morrer, que tanta gente poeta escreveu coisas heróicas sentindo este mesmo gosto que você está sentindo aí na sua boca? Já pensou quantos reis e miseráveis culminaram suas vitórias e derrotas tomando vinho numa taça que é parecida com esta sua, fosse de metal, de madeira ou de pedra? Imaginou quantos amores conheceram o mesmo caminho, quantas mulheres e homens, após tombar, juraram que nunca mais sentiriam este mesmo gosto que você está sentindo agora?

Pois então alcance já o copo d'água, note como é irônico ela ser transparente e não ter cheiro, toda vida brotar dela e ela ter por isso um nome feminino: a água. Imagine que todas as pessoas que você conheceu, incluindo tiranos, assassinos e aqueles que você mais admira, fazem ou fizeram coisas exatamente iguais a esta que você acabou de fazer, levando um copo d'água até a boca. Imagine o trabalho que foi construir esta rede de dutos e canos que entregam na sua casa água limpa quando você gira uma chave, que você nunca se perguntou exatamente como o filtro funciona porque você depositou confiança em alguém que não conhece para beber esta água agora. Por fim pense em seus antepassados mais longínquos, lembre que todos tinham que ir até a beira dos rios de onde toda essa água veio pra poder bebê-la. E pergunte-se por que nunca mais fomos para estas margens que nossos ancestrais conheceram, embora hoje as pessoas falem sobre a importância cada vez maior de se fazer isso.

Já notou como este fio é infinito, como há tanta história e tanto mistério bem aí na sua mão? Ou vai me dizer que você não comprou o vinho nem tomou a água coisa nenhuma? Porque se for este o caso, ainda há tempo, o supermercado pode estar aberto. Se eu fosse você ia lá agora comprar um vinho. Prestava atenção nos gestos mais triviais, nas coisas mais pueris, nisso que você faz todos os dias e que não vê, porque é como se você tivesse piscado. 

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